No Dia da Consciência Negra, leio Machado de Assis
Imagine-se o leitor parado, diante de um semáforo,
numa avenida qualquer da cidade. Certamente haverá ali uma criança negra – ou
parda, como alguns preferem. Ela fará malabarismos, tentará vender balas (bombons)
ou simplesmente pedirá moedas aos motoristas ali parados.
Acredito que, de seus carros, os espectadores,
em sua maioria, levantarão o vidro da janela ou simplesmente balançarão o dedo
com sinal negativo em direção ao menino, para que ele não se aproxime de seu veículo.
Imagine-se agora, caro leitor, vivenciando esta
mesma situação na cidade do Rio de Janeiro, próximo ao Morro do Livramento, na
primeira metade do século XIX (1850). Haverá ali uma criança negra – ou parda –,
também a vender doces, que o nobre leitor poderá repelir e afastá-la de seu
veículo. Aquela criança, porém, poderia ser Machado de Assis, que anos
mais tarde se tornaria o maior nome de nossa literatura.
No Dia da Consciência Negra homenageio esse
gênio, representante maior não só de nossa literatura, mas de nossa
intelectualidade e da cultura nacional.
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 1839. Filho de um pintor de
paredes, descendente de escravos alforriados e de uma lavadeira portuguesa. Pouco
ou nada frequentou a escola e jamais cursou uma faculdade. Mas com esforço e
resignação, fez-se um gênio. Com um padre, aprendeu o Grego e Latim; com um forneiro,
aprendeu o francês. As aulas eram o pagamento por seu trabalho na padaria.
Aos seis anos, perdeu a madrinha rica que o
protegia. Ficou órfão de mãe aos 10 anos de idade e logo passou a trabalhar vendendo
doces para ajudar sua madrasta, uma doceira numa escola pública. Machado de
Assis venceu muitas adversidades. Além de sua condição de negro, numa sociedade
preconceituosa e escravagista, sofria com a epilepsia e outras debilidades. Nada
foi fácil em sua vida.
Lutou para subir socialmente suprindo-se de superioridade intelectual e da cultura do Rio de Janeiro, a então capital brasileira. Trabalhou como tipógrafo, assumiu cargos públicos nos Ministérios da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas.
Como escritor, produziu em todos os gêneros: romance,
poesia, crônica, teatro e conto. Foi jornalista e crítico literário. Ainda em
vida, alcançou fama literária no Brasil e no mundo, sendo considerado o maior
nome da literatura brasileira.
Esteve presente no momento da assinatura da lei
Áurea. Testemunhou a mudança política no país, quando a República substituiu a
Monarquia, além de diversos eventos político-sociais do mundo em finais do
século XIX e início do XX.Foi ele fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras.
Para o crítico literário Harold Bloom, Machado
de Assis é o maior escritor NEGRO de todos os tempos, ainda que os biógrafos
tenham preferido considerá-lo um mestiço ou mulato. Aliás, por quase toda a
minha vida, fizeram-me crer que Machado de Assis era branco. A velha estratégia
do embranquecimento, tão presente na história oficial do Brasil.
Acredito que todo cidadão brasileiro deveria
vencer o preconceito e ter orgulho em dizer que Machado de Assis e Eça de
Queiroz são considerados os maiores escritores em língua portuguesa; mas que
Machado de Assis, negro e brasileiro, é um dos gênios da história da
literatura, ao lado de autores como Shakespeare, Dante e Camões. Que ele é o único
de nossos escritores a se colocar em pé de igualdade com esses grandes vultos
na literatura universal.
Já tive uma dívida com Machado de Assis quando,
por muitos anos, faltava-me a leitura de Quincas Borba, uma maravilha de
romance que, após ler, tornou-se para mim uma releitura obrigatória de tempos
em tempos.
No Dia da Consciência Negra, convido o leitor a
abraçar Machado de Assis. Um homem negro, com uma brilhante história de vida, de
talento, de caráter e de superação com que só temos a nos orgulhar.
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