MEU RADINHO DE PILHA E UMA HISTÓRIA DE CEM ANOS

 




“O rádio é o jornal de quem não sabe ler, é o mestre de quem não pode ir à escola, é o divertimento gratuito do pobre”. (Edgard Roquette-Pinto, considerado o “Pai do Rádio” no Brasil.)

 

 Cem anos de rádio no Brasil  - Uma história de sonhos e sons

Este ano, 2022, o dia 07 de setembro me trouxe lembranças de outros fatos marcantes que me levaram a produzir esse texto. Nada ligado às manifestações eleitoreiras e pseudopatriotas – que dominaram as comemorações em torno do bicentenário da Independência do Brasil.

Nessa data, comemorou-se o centenário da primeira transmissão do rádio no Brasil. Foi essa data que verdadeiramente atraiu minha atenção e me despertou maiores recordações.

Dois anos atrás, meu filho mais velho, um menino apegado a coisas antigas – como também o sou –, deu-me de presente um modesto radinho de pilha.  Era o Dia dos Pais, o primeiro que eu passava sem o meu pai ao meu lado. Ele sucumbira, poucos meses atrás, vítima da pandemia. 

Meu filho conhece meus gostos, ele sabia que o objeto teria, para mim, um grande valor sentimental. Decerto tinha em mente uma história pessoal que, tempos atrás. eu lhe havia contado.

Ocorrera-me quando eu ainda era um menino, numa época em que as coisas andavam difíceis lá por casa. Dificuldades não eram poucas. Para superar as adversidades, eu me refugiava em sonhos. Sonhava a esmo e, em meus sonhos, o rádio sempre estava presente. Como eu desejava possuir um rádio! Não podia comprá-lo, então sonhava um dia montar um rádio e até quem sabe, um dia, falar no rádio! Isso, eu sabia, era algo inatingível.  


“O rádio é um companheiro nas horas silenciosas”

Depois de muito ouvir meu pedido, meu pai finalmente pôde me dar um presente: uma caixinha azul com alça preta: um radinho de pilha, pequenino e bem simples. Mas como aquela pequena maravilha me fez feliz!

O rádio preenchia os momentos solitários do menino tímido que eu era. Era meu companheiro nas horas silenciosas do meu dia. À noite, mesmo com as pilhas do aparelho já “fracas”, eu ouvia, eufórico, as interferências das faixas de ondas curtas. Acreditava que elas vinham de rádios dos aviões. Estes cortavam a escuridão do céu e abriam caminho entre as estrelas cujo brilho não era maior que o dos meus olhos curiosos.

Àquelas horas da noite, eu ouvia atento os chiados, os zumbidos e os ruídos emitidos pelo rádio. Eu acreditava que vinham de naves alienígenas que nos sobrevoavam, observavam-nos e certamente aproveitavam para se comunicar à noite, quando todos na Terra dormiam. Eu ficava acordado por um longo tempo e tentava refinar a sintonia e traduzir alguma mensagem ou mesmo estabelecer um contato.

Às primeiras horas da manhã, o rádio me trazia as informações que meus irmãos e até meus pais desconheciam. Algumas, alegres. Outras nem tanto. Certo dia, numa manhã triste de dezembro, minha boa mãe se confundiu ao nos avisar sobre o assassinato de John Wayne e fui eu quem lhe corrigiu o engano.

Não havia televisor em nossa casa. Foi pelo rádio que, naquele dia fatídico, aos doze anos de idade, eu soube da morte de John Lennon. Expliquei-lhe que John Wayne era o ator dos filmes de cowboy e o homem assassinado seria, na verdade, um famoso cantor chamado John Lennon. Por todo aquele dia, as rádios tocaram suas músicas e eu me tornei um fã dos Beatles.

E ainda hoje o sou, 42 anos depois.  

Eram tempos difíceis, já o disse. Um dia, meio envergonhado, meu pai avisou-me que precisava urgentemente de um dinheiro e, teria que se desfazer de meu radinho de pilha. Fiquei muito triste, claro, mas de uma tristeza sem rancor. Naquele tempo, a despeito da idade, havia, na família, uma cumplicidade velada que nos fazia entender com facilidade os dramas e as prioridades que a miséria nos impunha. Restava sonhar. E nisso sempre fui mestre.


‘O rádio é o mestre de quem não pode ir à escola’

Conheci naquele tempo, por meio de velhas revistas, uma distante escola que eu jamais chegaria a conhecer. Chamava-se Instituto Universal Brasileiro. Ela promovia cursos profissionalizantes por correspondência e decidi que faria o de “radio-técnico”. Com ele, eu seria capaz de montar meu próprio rádio. Não apenas o aparelho, mas até um transmissor.

Mais uma vez, porém, a frágil argamassa do sonho desmanchou-se ante o concreto da realidade. Então me contentei em receber as revistas informativas enviadas pelo Instituto a este entusiasmado “futuro aluno”. Recebia várias delas. Afinal, chegavam gratuitamente, até mesmo o selo postal vinha como cortesia.

Pelas recordações que me traz, o pequenino aparelho que recebi de meu filho agiganta-se em valor sentimental. Hoje, meus problemas, ainda que semelhantes, são diferentes dos de outrora. Os sentimentos e sonhos, porém, permanecem os mesmos. E jamais deixo de cultivá-los nem de sonhá-los junto dos que me são próximos.

Voltando ao Sete de Setembro, enquanto se comemorava o Bicentenário da Independência do Brasil, estivemos eu e Gabriel – meu filho – diante daquela pequenina caixa sonora, até o fim do dia, ouvindo sons, compartilhando recordações e tecendo sonhos.


“Sonhar é preciso”

O dia que marca o centenário do rádio no Brasil me trouxe uma saudosa lembrança que dedico a meu filho e a meu pai, com quem permaneço sintonizado. Embora ele não mais esteja aqui entre nós, imagino que estará quem sabe abrindo caminho entre estrelas, tentando nos ouvir ou nos sentir em nossos antigos e em nossos novos sonhos.  

Dedico esse texto a meu pai (em memória), a meu filho, a todos os ouvintes e aos profissionais do rádio.

 


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