A insustentável proeza de um ser
A leitura, a percepção de uma obra artística ou literária é determinada pela vivência, pelo conhecimento acumulado e mesmo pela experiência emocional experimentada no momento pelo apreciador. Por isso é sempre válida a releitura, de tempos em tempos, de um livro ou de uma obra de arte.
A ideia me vem à mente diante da notícia de falecimento do escritor Milan Kundera que, entre outros bons livros, escreveu A insustentável leveza do ser, obra presente entre as que eu não poderia deixar de ler. Li há muito tempo, ainda saindo da adolescência e do ensino médio.
Confesso que não foi uma leitura fácil. Nela, acompanhei o enredo do personagem Tomas, um sujeito que não se adaptava ao regime político que seu país, a Tchecoslováquia, adotara ao ser invadido pela União Soviéticas. Dois aspectos me sobraram dessa leitura. Um deles foi a consciência do mal que um Estado opressor pode impor aos que se opõem a ele, tal qual ocorria com o protagonista da história. – E eu que adorava Marxismo!
O outro aspecto – e foi o que me levou a ler até a última página – foram os casos “amorosos” do protagonista. Admito, sem nenhum pudor ou constrangimento intelectual, que minha concepção da obra, à época ainda um leitor em formação, foi a trajetória de um homem chamado Tomas, que pegava todas as mulheres ao alcance de suas vistas. Ele era um fotógrafo, mas por imposição do regime, obriga-se a exercer outras várias funções.
Nas diversas experiências profissionais do protagonista ou onde quer que ele andasse, surgiam personagens femininas que, independente de classe social, ideologia, religião ou coisa que o valha, não escapavam de uma experiência sexual com aquele distinto cidadão.
Numa linguagem chula, porém moderna, diria que Tomas, o potagonista, era um autêntico “pegador”, um "comedor", para ser mais fiel. E isso talvez fosse o principal detalhe que animava a leitura e quiçá a inveja de um leitor tímido e solitário que não possuía a mesma destreza da personagem para com as mulheres.
Muitos anos depois, em minha fase adulta, eu já havia relido aquele livro e era professor em uma grande escola pública, onde presenciei, numa sexta-feira à noite, uma situação no mínimo inusitada. Um amigo, professor de Filosofia, pedira-me, um dia antes, umas ideias para ajudá-lo a manter seus alunos atentos em sua aula nas noites de sexta-feira. Ressalte-se que naquele dia da semana ele enfrentava um concorrente de peso, o Pagode da Liberato Barroso, uma muvuca que ocorria todas as sextas-feiras, numa rua ali próximo e deixava a escola praticamente deserta.
Realistas, sabíamos que, numa noite de sexta-feira, ninguém, nem mesmo o autor deste relato, deixaria de ouvir música devassa, de "balançar o esqueleto" e de apreciar o requebrado das moçoilas, além de tomar umas geladas num pagode, para ouvi-lo dissertar sobre Hegel, Nietsche ou Shopenhouer. Sugeri que ele inserisse seus temas filosóficos em situações cotidianas do aluno. Até, quem sabe, iniciar com a exibição de um filme instigante. Ele tomou esta última palavra ao da letra e isso não foi nada bom.
No dia seguinte, cedi a ele uma de minhas aulas e já me preparava pra dar uma conferida no movimento da rua Liberato Barroso quando fui arrebatado pelo barulho dos alunos que passavam pelo corredor. Indignados, eles proferiam insultos ao meu colega de trabalho: “Bicho tarado!”, “Cabra sem-vergonha, esse professor!”, “Safado! Devia mostrar isso é pra mãe dele!”.
Um casal de alunos me explicou o ocorrido.
– Aquele professor endoidou de vez. Tomou sua aula e juntou duas turmas pra ver um filme que ninguém conhece nem entende do que trata. Só rola safadeza, faz mais de uma hora.
A aluna mostrava-se ainda mais indignada:
– Parece filme pornô. Os moleques gostam, fazem maior algazarra lá atrás, mas ele tem de lembrar que tem mulher de família na sala.
Meu colega acabara de entrar numa fria. Deduzi que ele não havia lido a obra antes de escolher o filme. Pensei rápido e, como os alunos, dirigi-me para pagode da rua Liberato Barroso. Lá, talvez conseguisse imaginar uma solução para a insustentável situação em que se envolvera aquele triste ser, o professor de filosofia.
Uma rica.explanação sobre o caso que deu errado.Coitado do professor.
ردحذفDe fato, coitado do professor. Acredito que o problema foi a má escolha. Não do livro, que é excelente, mas do filme, decerto inadequado àquele público. Aliás, o próprio autor, Milan Kundera, havia reprovado aquela adaptação cinematográfica de sua obra.
حذفObrigado por acessar e comentar este blog.
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