UMA SENHORA VAI À ESCOLA
FOTO: Livraria Travessa
Era a época dos cursinhos. O
professor, que almejava o título de “medalhão”, caprichava nos famosos “bisus”
para o vestibular. Valia-se de tudo – piadas, músicas, teatralização – tudo, para
conquistar a clientela e ser bem avaliado nas temíveis enquetes.
Naquele
tempo, a Universidade Federal do Ceará – UFC indicava, para o exame, uma lista
de livros paradidáticos que, entre clássicos e contemporâneos, contemplavam livros
de autores cearenses. A medida foi responsável por trazer à tona excelentes
obras e autores locais e até evitar que alguns padecessem no esquecimento em
seu próprio torrão natal.
Senhora, um clássico de José de Alencar, constava numa dessas listas e me traz uma saudosa recordação. A história
tem, como protagonista, Aurélia Camargo, personagem brilhante, magnificamente
construída pelo mestre do romance. A apresentação da heroína se faz logo no início
do livro, de forma triunfal. Eu entendia que, em sala de aula, a personagem
merecia uma apresentação à altura – ou quase. Dessa forma, entrava em sala, e
orientava os alunos a abrirem o livro na primeira página para acompanhar a leitura
que eu faria em voz alta. Assim se fazia:
“Há
anos raiou nos céus fluminenses uma nova estrela. Desde o momento de sua ascensão, ninguém
jamais lhe disputara o cetro. Tornou-se a rainha dos salões. (…)”
Logo,
viam-se olhares assombrados dos alunos e alguns seus dedos disfarçadamente apontados
para este professor, avisando ao companheiro do lado que o leitor ali na frente
lia sem pôr os olhos na página. Estranhavam ouvir-me pronunciar todas as
palavras, tais quais estavam impressas nas duas primeiras páginas do livro, sem
olhá-las. Era pura estratégia.
O
romance “Senhora”
foi publicado pela primeira vez em 1875. Pertence à escola romântica, caracterizada
pelo subjetivismo, pelo sentimentalismo e idealização da mulher. Apresenta Aurélia
Camargo que, juntamente com as protagonistas das obras Lucíola e Diva, representa um dos perfis
femininos mais fortes da criação de José de Alencar. Senhora surpreende
o leitor por apresentar como protagonista uma mulher emancipada, insubmissa, que
foge ao modelo de mulher idealizado pelos autores românticos.
Também
declina das demais obras daquele estilo de época a impressão que o autor expõe
sobre o casamento, apresentado, no livro, não como um ato romântico, mas uma
transação comercial em que o elemento central é o dote oferecido pela família
da noiva. Prevalece, na transação, o interesse das famílias, em que o poder de
decidir cabe ao patriarca. A obra é dividida
em quatro partes intituladas pelos elementos que sustentam o casamento por
interesse: “O preço”, “Quitação“, “Posse”
e “Resgate”.
Sobre
isso, leitores críticos podem determinar José de Alencar não gostava de
casamento. As páginas de Senhora oferecem substância para essa opinião. Nelas,
há inclusive uma crítica à união matrimonial por interesses financeiros.
A
história é ambientada na cidade do Rio de Janeiro, apresentada de forma
idealizada, como uma Paris ou qualquer capital europeia. Na primeira parte, O
preço, Aurélia Camargo, rica frequentadora da corte, é disputada pelos
jovens da sociedade, em razão de seus dotes físicos e financeiros. Ela envia
seu tio e tutor para negociar seu casamento com Fernando Seixas — rapaz de
origem simples, mas que mantinha hábitos de moço rico. Oferece a ele um dote
para que ele se case com ela. Porém, há uma condição: ele não saberia a
identidade da noiva antes de aceitar o acordo. Em princípio relutante, Seixas,
enfim, aceita a proposta.
Na
segunda parte, Quitação, revela-se a origem humilde de
Aurélia e o início de sua relação com Fernando, um caça-dotes que a havia abandonado
por outra mulher. Também é esclarecido o motivo da ascensão social de Aurélia: herdara
a fortuna do avô que, antes, fora indiferente a ela.
Na
terceira parte da obra, Posse, Fernando está casado com Aurélia. Vive um
casamento de aparências, em que ela o humilha por tê-lo “comprado”. Em
sociedade, representam um casal amoroso. Na intimidade, tratam-se com
hostilidade.
Na
quarta parte, Resgate, a paixão que Aurélia ainda sente por Fernando
começa a superar seu desejo de vingança. Ele está determinado a juntar fortuna,
devolver o dinheiro do dote e se livrar da megera. Esse desejo vai mudando. Ao quitar
a dívida e se despedir de forma triunfal da jovem esposa, ela lhe faz uma grande
declaração de amor. A partir de então, apaixonados, vivem um final feliz.
Senhora
é uma obra que rompe com a lógica do final romântico que seria “casar e viver
feliz para sempre”. Nela, é o fim do casamento que decreta a felicidade do
casal. Quando o casamento movido pelo interesse financeiro acaba, o verdadeiro amor
tem início.
E
assim finaliza: “As
cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores,
cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal”.
إرسال تعليق