NÃO SE MALTRATA UMA FLOR, MÁXIME A ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO

 

NÃO SE MALTRATA UMA FLOR, MÁXIME A ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO
 


“Última flor do Lácio, inculta e bela / És, a um tempo, esplendor e sepultura (...)” Nesse primeiro verso do famoso poema de Olavo Bilac, a “última flor do Lácio” é a língua portuguesa, considerada a última das filhas do latim.

Ferramenta importantíssima para o poeta e para todo aquele que faz da escrita a sua lida, o idioma deve – ou deveria – ser muito bem cuidado. Paradoxalmente, na busca por aprimorar, por mostrar domínio ou inovação em seu labor literário, em vez de zelar pelo bom uso do idioma, muitos escrevinhadores acabam por transgredi-lo, por maltratá-lo no aspecto normativo, propositalmente ou não.

Certo que existem as “licenças poéticas”, os coloquialismos e outros recursos. Eles promovem espontaneidade à fala ou à escrita e até tornam o texto mais agradável, mais simpático ... mais literário.

Algo que não deixo de apreciar nos livros é o modo como o autor faz uso da linguagem, do idioma. Identifiquei, por exemplo, algo comum nos escritores portugueses e nos africanos que fazem uso da Língua de Camões. Autores como José Saramago e Mia Couto, por exemplo. Ao narrar suas histórias, dão-lhes um ar de anedotas. Fica algo agradável ao leitor, como se este estivesse ouvindo alguém a contá-las, como se à beira de uma fogueira. Mia Couto, moçambicano, brinca com o idioma, usa palavras que não estamos acostumados a ouvir, muito menos a ler, mas que há muito as temos no imaginário. Elas normalmente nos transportam a tempos e lugares maravilhosos. Ao lê-las, ficamos pensando por que nunca as utilizamos no dia a dia. E isso é maravilhoso.

O mesmo tom anedótico e encantador existe em Saramago. Ocorre em O homem duplicado, Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e em outras do autor. Mas há um ponto que me intriga, pois por vezes, durante a leitura, chega a me atrapalhar o entendimento de trechos da obra. É que o autor, em sua maestria no trato com a língua, resolve corrompê-la. Ele omite algumas convenções de escrita e isso exige, de um leitor limitado como este que vos fala, dose extra de atenção ou diversas releituras de alguns trechos da história.

O autor omite os marcadores que distinguem o discurso do narrador da fala das personagens. O mesmo com os que identificam as interrogações e os detalhes que marcam inícios de parágrafos ou anunciam a personagem que fala.

RubemFonseca foi um autor nacional que utilizou bastante dessa brincadeira com o vernáculo. Sua narrativa ágil e competente prende e fascina o leitor, que em momento algum pode “baixar a guarda”. Tal qual Saramago, o autor omite os mesmos marcadores como se preparasse uma armadilha no desenvolver da trama. O leitor desatento corre o risco de ser fisgado por ela.

Gabriel GarciaMárquez também já me deu algum trabalho. Em O Outono do patriarca, deparei-me com um texto contínuo, rápido, que tão longo eram os períodos e tão extensos os parágrafos do livro, quase não me deixava respirar.

Não condeno as inovações. Não sou tradicional ao ponto de rejeitar autor ou obra que transgrida costumes, convenções sociais ou gramaticais. Isso não elimina o valor da criação. Principalmente quando se trata de escritores consagrados.

Problema vejo quando um autor maltrata o idioma de forma gratuita, simplesmente em nome do “estilo” ou do “vanguardismo” de sua literatura. Em muitos casos revelam inexperiência, preguiça no ofício da escrita ou desconhecimento mesmo. Esses costumam negar qualquer importância da gramática e do uso correto do idioma. Para eles, o que vale exclusivamente é a história contada.

E não há atenuante. Conheci um professor de língua portuguesa que era músico e poeta. Um dia o vi sentar-se sobre o birô da sala, numa turma de alunos do ensino médio. Com o violão em punho, ele ergueu uma gramática – Faraco não merecia isso! – e decretou:

– Isso aqui não vale nada!  Se vocês querem aprender Língua Portuguesa, esqueçam a gramática. É lixo!

Inspirado, iniciou a tocar e cantar uma música que não consegui parar para ouvir.

Aprecio os bons escritores, a boa literatura. Nacional ou estrangeira, ambas possuem grandes autores e obras ainda maiores que eles.

Aos grandes, não me atrevo sugerir, muito menos criticar. Aos que trilham os primeiros passos da escrita, garanto não condenar de todo as transgressões ou arroubos de vanguarda. Eles não tiram o valor da obra, se bem escrita.

Mas acredito, sim, que não se deve maltratar gratuitamente o idioma ou melhor: “a última flor do Lácio”, como diria o poeta.  

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