A DANÇA DOS FELIZES

 


A DANÇA DOS FELIZES

Ivan Melo

Anos atrás, quando a avenida Beira-mar sediava o maior carnaval fora de época de Fortaleza – o Fortal – havia ali um homem que chamava a atenção e reinava à frente de um público. Espalhafatoso, de longo cabelo e barba, ele tirava a camisa e dançava a esmo.

Ao dançar, agregava em seu entorno verdadeira multidão, um grupo enorme de pessoas do “baixo clero”, aqueles que não pertenciam aos blocos, o grupo chamado “pipoca”, os que não usavam abadá de nenhum dos blocos e ocupavam o espaço fora da corda. O homem as liderava. Corria, fazia sinais de comando e desenvolvia sua coreografia sem nada planejar previamente, e era espontânea e naturalmente seguido.

Sério, parecia agressivo, mas ganhava, de pronto, a simpatia dos que o seguiam na dança e dos que a ele assistiam e o aplaudiam das arquibancadas e até dos camarotes.

Vi-o depois em outros momentos, dançando, pelo centro da cidade. Não o via como um louco, um louco que dançava. Era melhor que isso: era um homem que dançava porque era feliz. E também poderia ele ser um homem feliz porque dançava.

No centro de Fortaleza, havia outra figura excêntrica. Uma mulher que se vestia como menina e vivia a dançar. Usava short e tênis, tudo cor-de-rosa. Ela parava na frente das lojas e os vendedores, que já a conheciam, “soltavam o som”. Era a deixa. A mulher, que já não era nenhuma mocinha, sorria, fazia trejeitos e dançava, com empolgação jamais vista. As pessoas que passavam se estranhavam, ignoravam, riam, espantavam-se, enquanto outras, por molecagem, brincavam e a incentivavam. Ela, como se estivesse em outra dimensão, apenas dançava e sorria.

Louca? Moradora de rua? Pedinte? Não havia resposta. Sabia-se apenas que ela dançava e, enquanto dançava, era ela uma mulher feliz. E isso era tudo.

Presenciei o encontro desses dois contumazes dançarinos. Vi-os dançar juntos o que chamei “a dança dos felizes”, pois eram os dois a pura felicidade.  Há pouco mais de um ano, soube que aquele homem que vi dançar nas ruas era irmão de um conhecido ex-vereador de Fortaleza. Na mesma época, soube, também, que infelizmente as ruas não seriam mais o seu palco. Ele havia morrido.

O morador da periferia, como o sou, conhece bem a enxurrada de pontos de venda de pratinho com comidas típicas que toma conta das calçadas. Gosto disso e não dispenso aquela combinação arroz/paçoca/creme-de-galinha. Num desses pontos de venda descobri uma pessoa genial, um homem – outro dançarino – que era a felicidade em pessoa.

Baixinho, de camiseta, calção e tênis, ele já chegou dançando, centrado numa música que só ele ouvia por um fone de ouvido. Fez seu pedido e, enquanto esperava, requebrava e vibrava empolgado, como se estivesse em um show. Falava algumas coisas ininteligíveis. Era como se estivesse pedindo música ou elogiando o artista que se apresentava. Fazia alguns passos de dança, gesticulava. Com os olhos fechados, levava a mão fechada ao peito sinalizando estar emocionado com a música. Ali próximo, por vários dias, eu o observava, cada vez mais interessado.

Eu o via ir embora, rua afora, ainda dançando. Percebi que em nenhum momento ele interrompia a sua dança. Perguntei à minha irmã sobre aquela interessante figura. Ela todos os dias o via. Sempre dançando. Ele chegava, falava o mínimo, fazia seu pedido, consumia, depois saía. E sempre dançando. Em todos esses momentos, ele estava dançando. Vez por outra, gesticulava como se admirado com a qualidade da música que tocava somente para ele.

“Ele está sempre dançando e sempre feliz”, disse-me ela.

Além disso, um detalhe no mínimo intrigante: não havia fones em seu ouvido. Entendi que a música que tocava era audível àquele homem, talvez imaginária ou inaudível aos demais. Acredito que em algum plano deve existir um palco, o mesmo onde aquele rapaz e o casal que mencionei há pouco dançam em sintonia.

Sonhei um mundo como esse palco imaginário, onde aquelas pessoas dançavam, em comunhão e sem pudor, a "dança dos felizes".


2 Comentários

  1. Belo texto, Ivan. Fez-me lembrar outro que dançava feliz e era arrodeado de pessoas e sentimentos descritos por você. Lembra do "Burra Preta"? esse era o apelido que os transeuntes do centro da cidade de Fortaleza o davam. No tempo em que ainda haviam as casa de discos, os chamados LP(s), compactos e fitas cassete e ia para o centro comprar e, não raras vezes, encontrava coubesse figura, um homem preto de mais ou menos dois metros de altura que se rebolava em frente das casas de discos ao som eletrizante que estava sendo reproduzido. Valeu

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    1. Fortaleza teve inúmeras figuras folclóricas entre seus moradores. Já ouvi várias histórias do Burra Preta, personagem antológica da praça do Ferreira e da memoria da cidade.
      Obrigado por visitar a página.

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